PARA UMA NOVA CULTURA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA”
“Qualquer reforma do Estado e da Administração Pública deve começar pelo combate sem tréguas à crença de que o interesse geral é sinónimo de “interesse público” e este se identifica com o interesse estatal. E, mais grave ainda, que os interesses do Governo coincidem com o bem comum.”
José Manuel Moreira, membro da The Mont Pelerin Society e Professor Associado da Universidade de Aveiro, tem dedicado boa parte da sua obra à análise das relações entre Estado, Governo e Sociedade Civil tendo por base uma concepção objectiva da ética e da justiça.
Este livro, com prefácio de Júlio Pedrosa, reúne um conjunto de cinco textos do autor escritos entre 1999 e 2001 e enquadrados por um Estudo Introdutório onde se realça a necessidade de repensar as funções e o modo de organização do Estado por forma a potenciar a existência de uma sociedade com maior liberdade de escolha e responsabilidade individual bem como a permitir a revitalização das instituições intermédias de carácter voluntário.
De forma a que a necessária reforma da Administração Pública não se limite a meras alterações superficiais, José Manuel Moreira defende a urgência de reequacionar o papel do Estado na sociedade, libertando-a de um intervencionismo de efeitos perversos e assim evitando os malefícios de uma situação em que “ao tentar fazer de mais, o Estado acaba por não fazer bem aquilo que é essencial e prioritário” (p. 17).
Neste sentido, estamos com o autor quanto à necessidade de ultrapassar falsas dicotomias entre Estado e mercado ou entre público e privado, dicotomias essas que derivam da perigosa confusão entre ordem pública e ordem estatal (p. 21). Assume assim particular importância para a constituição de uma sociedade livre o fortalecimento de um sector intermédio, de base voluntária, que promova soluções efectivas para os problemas públicos que o Estado, apesar do crescimento impressionante da despesa pública e da burocracia, é incapaz de resolver. Importa realçar neste âmbito que o referido fortalecimento das instituições intermédias deverá passar “mais pelo reforço do mercado e da liberdade individual do que pelas boas graças e pelos subsídios dos Governos” (p. 26). Se assim não for, corremos o risco de não ter instituições intermédias verdadeiramente autónomas e livres e de minar ainda mais as já muito debilitadas virtudes cívicas.
Se por um lado é necessário superar falsas dicotomias, por outro urge estabelecer a distinção entre serviços públicos e sector estatal. Os serviços governamentais existentes deverão ser sujeitos a uma rigorosa avaliação da necessidade regida pelo princípio da subsidiariedade, bem como por critérios de eficiência e rigor na sua prestação, por forma a determinar se não poderão ser fornecidos de forma mais vantajosa pelo sector privado, ou, quando existe um argumento a favor da provisão pública, pelos poderes e administrações locais (pp. 27-28). Assumindo uma posição crítica face ao actual Estado-Providência, José Manuel Moreira defende um “Estado mais regulador e fiscalizador e menos prestador de serviços.” (p.29). Só dessa forma será possível que “a máquina política e administrativa tenha uma função ordenadora e não perturbadora ou entorpecedora da vitalidade da vida económica, social ou cultural” (p.73).
Neste contexto, facilmente se compreende a preocupação do autor com a proliferação de “direitos sociais” que, pela acção intervencionista que exigem do Estado e pela desresponsabilização dos indivíduos que acarretam, geram consequências nefastas não só a nível da ineficiência económica que provocam mas também, e com efeitos eventualmente ainda mais graves, a nível da distorção do processo político transformado num jogo de interesses de onde “resultam duas consequências. Uma mais visível: a despesa pública, os impostos e a dívida pública. Outra mais letal, a longo prazo: a deslegitimação do Estado.” (p.46). Acresce ainda que o intervencionismo crescente do Estado tem um efeito corrosivo quer sobre o espírito de previdência dos indivíduos, quer sobre as instituições sociais (a começar pela família) que em melhor posição estariam para fazer face aos problemas que supostamente se visa resolver através das sucessivas intervenções.
Um Estado que se ocupe de matérias das quais não se deveria ocupar e que asfixia através da sua intervenção a sociedade e a economia é um Estado que não está em condições de cumprir a sua função essencial de garantir a manutenção da ordem e da Lei. Nesse sentido temos actualmente um Estado pesado, gastador e em larga medida ineficiente que, precisamente por essas razões, é um Estado débil incapaz de garantir a sua finalidade primordial.
A análise realizada pelo autor ao sector do ensino é particularmente interessante e pertinente (pp. 75-91). Pondo em causa as justificações tradicionais para o domínio estatal do ensino, José Manuel Moreira coloca uma série de questões acutilantes de entre as quais destacaríamos a seguinte: “Haverá razões para impedir a maioria das famílias de exercerem o seu direito e dever de escolha, só porque alguns pais podem falhar numa escolha particular (por exemplo, a quantidade de educação)?” (p. 79). Criticando a nomenklatura educativa com a sua ânsia de controlo e as sucessivas “reformas obrigatórias, gratuitas e universais” (p. 82), o autor defende a devolução da liberdade de escolha às famílias e aos indivíduos reservando ao Estado um papel supletivo e de regulação.
Perante a (polémica) questão de qual será a melhor forma de devolver a capacidade de escolha às famílias, José Manuel Moreira refere a proposta dos cheques-educação (vouchers), indicando de seguida que essa opção tem vindo de modo crescente a ser alvo de críticas na medida em que, a ser adoptada, geraria pressão para o aumento da despesa pública e aumentaria a intervenção estatal no ensino. Assim sendo, a abordagem de concessão de créditos de impostos será eventualmente preferível à abordagem dos subsídios (pp. 33-37). Pessoalmente, parece-nos que as políticas de créditos de impostos são sempre preferíveis à concessão de subsídios (como é o caso dos vouchers) uma vez que diminuem a carga fiscal global e introduzem tendencialmente menos distorções nos sectores a que se apliquem.
No que respeita à problemática do desenvolvimento (pp. 105-124), o autor realiza uma análise onde são combinados elementos relativos à importância do factor criativo humano, ao carácter dinâmico, informal, tácito e disperso do conhecimento que está na base do desenvolvimento (na linha de Hayek), e à rejeição do “trade-off entre confiança, ética e eficiência” (p. 106) fazendo uso do conceito de capital social através do qual se compreende a forma como a ética constitui um elemento essencial para a coordenação e crescimento da economia. A sucinta apresentação de uma teoria schumpeteriana do desenvolvimento ético e a sua relação com a noção de “responsabilidade social da empresa” (pp. 109-112) visa complementar o referido enquadramento teórico.
José Manuel Moreira realça a importância para o processo de desenvolvimento de instituições formais e informais adequadas bem como de um um Estado eficaz que actue no sentido de “criar a ordem da concorrência, mas não entorpecendo o processo económico da concorrência” (p. 123).
Merece ainda destaque o tratamento dado pelo autor à relação entre democracia e liberdade (pp. 135-140). Em primeiro lugar porque acentua que “o liberalismo requer que todo o poder, e por isso também o da maioria, seja limitado.” (p. 137). Depois, porque apresenta uma importante clarificação ao referir que a igualdade formal pela qual lutam os liberais não é compatível com a noção, impossível de concretizar numa sociedade livre, segundo a qual uma ordem só seria justa se as oportunidades iniciais de todos os indivíduos fossem iguais à partida (pp. 138-139).
Assim sendo, uma sociedade livre requer que a nomocracia prevaleça sobre a teleocracia, ou seja, é necessária a preservação de uma “ordem abstracta e independente dos objectivos que está assegurada pela obediência a regras abstractas de conduta justa” (p. 140). É a partir deste princípio que se desenvolve a crítica ao denominado Estado de Bem-Estar, o qual para além de ter efeitos contraproducentes gera uma economia de interesses que vai minando quer o Estado quer o livre mercado (pp. 141-150).
Em resumo, defendendo a necessidade de voltar a valorizar as virtudes tradicionais, a teoria dos direitos naturais e uma ética universal que rejeite o relativismo e a arbitrariedade, José Manuel Moreira defende para o Estado um papel essencialmente regulador por forma a que este garanta o cumprimento das “regras do jogo” e dessa forma permita o desenvolvimento em liberdade de uma verdadeira Sociedade de Bem-Estar.